Depois do cinema experimental de ORÁCULO, realizado entre Berlim e Floripa, a Mostra Aurora propõe uma guinada, até certo ponto surpreendente, com a exibição de ROSA TIRANA, realizado na caatinga de Poções, Sudoeste da Bahia. Surpreendente porque ROSA TIRANA é um filme de narrativa mais linear, com elementos típicos do cinema nordestino, associados a uma cultura regionalista e sertaneja, por meio da história de uma menina que tenta escapar da seca e caminha pelo sertão em busca de Nossa Senhora Imaculada.
Foto: Divulgação
É curioso perceber as semelhanças e diferenças entre AÇUCENA e ROSA TIRANA, dois filmes realizados no interior da Bahia por diretores estreantes, novatos no circuito de grife dos festivais brasileiros de autor. Enquanto AÇUCENA mostra domínio dos recursos mais típicos do cinema contemporâneo, em especial a indistinção entre ficção e documentário, tendo participado de laboratórios internacionais, com recursos da Ancine e agradecimentos a curadores importantes no cenário nacional, ROSA TIRANA foi realizado com apoios locais e recursos de rifas, incorporando os elementos mais tradicionais da cultura nordestina. Mas, para os que julgam (eu, inclusive rs) que o regionalismo está ultrapassado, que a cultura do Nordeste se moderniza e complexifica, avançando para além do cenário sertanejo, ROSA TIRANA é comovente por promover uma aposta frontal por um cinema tipicamente regionalista, mostrando que o estilo em arte nunca é anacrônico, mas se repete e se renova, assim como as estações do ano, a seca e a chuva, a vida e a morte.
É formidável ver um filme tão promissor quanto ROSA TIRANA sendo realizado no Sudoeste da Bahia, na pequena Poções, cidade a cerca de 70km de Vitória da Conquista, terra de Glauber Rocha. Mas nesse filme até um tanto ingênuo (de novo, assim como AÇUCENA, uma aposta convicta na ingenuidade, algo que muito me interessa), não há o tom político-revolucionário do cinema de Glauber ou do Cinema Novo. Talvez seja possível ver algo de um VIDAS SECAS no filme de Rogério Sagui, mas na verdade seu objetivo é menos o de promover um exame dos impactos sociais da seca mas percorrer um percurso pelo imaginário, visto pelo ponto de vista dessa menina que sai de casa e avança para o mundo. O universo sertanejo é visto, portanto, com uma aura de fábula infantil, rompendo com a tendência do realismo social miserabilista, e investindo num tom poético e lúdico. O filme começa numa atmosfera de penitência mais próxima ao realismo, com a rotina da família na casa sertaneja, aproximando o vazio da rotina sem maiores perspectivas ao tom de filmes como O GRÃO, de Petrus Cariry. No entanto, algo muda após a decisão da menina de abrir uma porta – uma porta que abre o filme para o imaginário.
Talvez falte a ROSA TIRANA uma maior densidade nos elementos de dramaturgia, especialmente o roteiro, já que o percurso da menina pela caatinga e as situações encontradas (o homem das bonecas, as criaturas da terra) não parecem surgir com muita potência. O que nos encanta mais no filme é justamente os momentos em que o diretor abandona qualquer perspectiva de situar o espectador numa história e simplesmente mergulha em compor climas e ambiências. O filme é muito composto pelo uso extremamente presente da paisagem, ainda que não seja propriamente um uso criativo, mas de grande beleza de composição pictórica e de luz. E também pela música, que faz o filme ter uma sonoridade marcante, por vezes se aproximando de um musical. Os tempos mais largos, o certo minimalismo, a presença cativante da jovem atriz mirim conferem ao filme um tom cinematográfico, um olhar delicado e talentoso do realizador em mergulhar nesse universo, mesmo com referências já tão matizadas. Apesar de nitidamente realizado com poucos recursos, é notório o esmero do diretor em cada detalhe da realização – os graciosos créditos iniciais, os objetos, as cores, a formidável paleta de cor de todo o filme – o que confere a algumas cenas um tom absolutamente encantador. Há uma forte crença nessa encenação, uma aposta frontal nesse suposto anacronismo, nos valores do sertão, o que torna o filme em muitos momentos uma aventura comovente. Menos preocupado em ater-se aos recursos típicos do contexto de grife, e simplesmente mergulhar de cabeça na sua própria verdade, nas referências de seu próprio universo, ROSA TIRANA é comovente justamente por abrir outros olhares para o sertão, ainda que mantendo seus princípios de base. Existe uma poesia aberta em ROSA TIRANA mas também uma certa melancolia, uma dor, uma solidão expressa pelos passos da personagem.
ROSA TIRANA é notável talvez não por sua estrutura geral mas justamente por esses momentos em que o filme se entrega ao prazer de construir climas e cenas de forma lúdica: a mãe que canta no umbral da porta quase como se fosse uma despedida (meu momento preferido), um monólogo muito forte de José Dumont (ainda que o impacto se reduza por uma montagem um tanto excessiva, que opte por quebrar em vários planos), uma câmera que surpreendentemente passeia esfuziante pela simples festa multicolorida em Bodocó, a expressão dos rostos da família de retirantes que socorre Rosa, a maravilhosa cena do cortejo com as crianças de roupas azuizinhas, o belo gesto de Rosa de deixar a flor aos pés da Santa, etc.). Creio que ROSA TIRANA ficará em minha memória mais por esses momentos de rara beleza singela do que por sua dramaturgia de feitio regionalista.
ROSA TIRANA mostra a enorme potência que desponta no interior do país. É incrível que um filme como esse seja todo realizado no interior do Nordeste – algo que me interessa em especial. Espero voltar a esse filme em um outro momento. Acho também belo o gesto da curadoria de Tiradentes em se abrir para um filme como esse que, em certas medidas, destoa do protótipo gestado no evento.
Por Marcelo Ikeda
Crítico de cinema do site Cinecasulofilia
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