Pular para o conteúdo principal

'Rosa Tirana', de Rógério Sagui, por Marcelo Ikeda

Depois do cinema experimental de ORÁCULO, realizado entre Berlim e Floripa, a Mostra Aurora propõe uma guinada, até certo ponto surpreendente, com a exibição de ROSA TIRANA, realizado na caatinga de Poções, Sudoeste da Bahia. Surpreendente porque ROSA TIRANA é um filme de narrativa mais linear, com elementos típicos do cinema nordestino, associados a uma cultura regionalista e sertaneja, por meio da história de uma menina que tenta escapar da seca e caminha pelo sertão em busca de Nossa Senhora Imaculada.

Foto: Divulgação

É curioso perceber as semelhanças e diferenças entre AÇUCENA e ROSA TIRANA, dois filmes realizados no interior da Bahia por diretores estreantes, novatos no circuito de grife dos festivais brasileiros de autor. Enquanto AÇUCENA mostra domínio dos recursos mais típicos do cinema contemporâneo, em especial a indistinção entre ficção e documentário, tendo participado de laboratórios internacionais, com recursos da Ancine e agradecimentos a curadores importantes no cenário nacional, ROSA TIRANA foi realizado com apoios locais e recursos de rifas, incorporando os elementos mais tradicionais da cultura nordestina. Mas, para os que julgam (eu, inclusive rs) que o regionalismo está ultrapassado, que a cultura do Nordeste se moderniza e complexifica, avançando para além do cenário sertanejo, ROSA TIRANA é comovente por promover uma aposta frontal por um cinema tipicamente regionalista, mostrando que o estilo em arte nunca é anacrônico, mas se repete e se renova, assim como as estações do ano, a seca e a chuva, a vida e a morte.

Foto: Divulgação
É formidável ver um filme tão promissor quanto ROSA TIRANA sendo realizado no Sudoeste da Bahia, na pequena Poções, cidade a cerca de 70km de Vitória da Conquista, terra de Glauber Rocha. Mas nesse filme até um tanto ingênuo (de novo, assim como AÇUCENA, uma aposta convicta na ingenuidade, algo que muito me interessa), não há o tom político-revolucionário do cinema de Glauber ou do Cinema Novo. Talvez seja possível ver algo de um VIDAS SECAS no filme de Rogério Sagui, mas na verdade seu objetivo é menos o de promover um exame dos impactos sociais da seca mas percorrer um percurso pelo imaginário, visto pelo ponto de vista dessa menina que sai de casa e avança para o mundo. O universo sertanejo é visto, portanto, com uma aura de fábula infantil, rompendo com a tendência do realismo social miserabilista, e investindo num tom poético e lúdico. O filme começa numa atmosfera de penitência mais próxima ao realismo, com a rotina da família na casa sertaneja, aproximando o vazio da rotina sem maiores perspectivas ao tom de filmes como O GRÃO, de Petrus Cariry. No entanto, algo muda após a decisão da menina de abrir uma porta – uma porta que abre o filme para o imaginário.
Talvez falte a ROSA TIRANA uma maior densidade nos elementos de dramaturgia, especialmente o roteiro, já que o percurso da menina pela caatinga e as situações encontradas (o homem das bonecas, as criaturas da terra) não parecem surgir com muita potência. O que nos encanta mais no filme é justamente os momentos em que o diretor abandona qualquer perspectiva de situar o espectador numa história e simplesmente mergulha em compor climas e ambiências. O filme é muito composto pelo uso extremamente presente da paisagem, ainda que não seja propriamente um uso criativo, mas de grande beleza de composição pictórica e de luz. E também pela música, que faz o filme ter uma sonoridade marcante, por vezes se aproximando de um musical. Os tempos mais largos, o certo minimalismo, a presença cativante da jovem atriz mirim conferem ao filme um tom cinematográfico, um olhar delicado e talentoso do realizador em mergulhar nesse universo, mesmo com referências já tão matizadas. Apesar de nitidamente realizado com poucos recursos, é notório o esmero do diretor em cada detalhe da realização – os graciosos créditos iniciais, os objetos, as cores, a formidável paleta de cor de todo o filme – o que confere a algumas cenas um tom absolutamente encantador. Há uma forte crença nessa encenação, uma aposta frontal nesse suposto anacronismo, nos valores do sertão, o que torna o filme em muitos momentos uma aventura comovente. Menos preocupado em ater-se aos recursos típicos do contexto de grife, e simplesmente mergulhar de cabeça na sua própria verdade, nas referências de seu próprio universo, ROSA TIRANA é comovente justamente por abrir outros olhares para o sertão, ainda que mantendo seus princípios de base. Existe uma poesia aberta em ROSA TIRANA mas também uma certa melancolia, uma dor, uma solidão expressa pelos passos da personagem.

Foto: Divulgação
ROSA TIRANA é notável talvez não por sua estrutura geral mas justamente por esses momentos em que o filme se entrega ao prazer de construir climas e cenas de forma lúdica: a mãe que canta no umbral da porta quase como se fosse uma despedida (meu momento preferido), um monólogo muito forte de José Dumont (ainda que o impacto se reduza por uma montagem um tanto excessiva, que opte por quebrar em vários planos), uma câmera que surpreendentemente passeia esfuziante pela simples festa multicolorida em Bodocó, a expressão dos rostos da família de retirantes que socorre Rosa, a maravilhosa cena do cortejo com as crianças de roupas azuizinhas, o belo gesto de Rosa de deixar a flor aos pés da Santa, etc.). Creio que ROSA TIRANA ficará em minha memória mais por esses momentos de rara beleza singela do que por sua dramaturgia de feitio regionalista.
ROSA TIRANA mostra a enorme potência que desponta no interior do país. É incrível que um filme como esse seja todo realizado no interior do Nordeste – algo que me interessa em especial. Espero voltar a esse filme em um outro momento. Acho também belo o gesto da curadoria de Tiradentes em se abrir para um filme como esse que, em certas medidas, destoa do protótipo gestado no evento.


Por Marcelo Ikeda
Crítico de cinema do site Cinecasulofilia

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cacau Novaes entrevista Nego Jhá: 'Vem pro cabaré'

Nêgo Jhá é uma banda do interior da Bahia, da cidade de Iguaí, situada no Centro Sul do estado, criada em janeiro de 2018, por Guilherme Santana e Gabriel Almeida, através de u ma simples brincadeira entre amigos, que resultou em um trabalho profissional.  A banda já contabiliza mais de 30 milhões de visualizações no YouTube com suas músicas, entre elas, destaca-se “Cabaré”, música de trabalho gravada por artistas famosos, que compartilharam vídeos, que viralizaram na internet, ouvindo e dançando o hit do momento em todo o Brasil. Até no BBB21 da Rede Globo já tocou a música dos garotos. Foto: Divulgação Confira abaixo a entrevista com os integrantes da Nego Jhá: Cacau Novaes - Como surgiu a ideia de criar Nego Jhá? Como tudo começou?  Nego Jhá -  Através de uma brincadeira entre mim, Guilherme, e meu amigo Gabriel, que toca teclado.  No início não tínhamos em mente de que isso se tornaria algo profissional, pensamos apenas em gravar por diversão e resenha. Cacau Novaes -  É uma dupl

Os morcegos estão comendo os mamãos maduros, de Gramiro de Matos

Sim, morcegos de fato comem mamãos, ou mamões maduros, mas, não é sobre morcegos nem sobre mamões o segundo e que eu saiba, derradeiro romance de Gramiro de Matos, ou Ramiro de Matos, ou Ramirão Ão Ão, cujo subtítulo, é,”O besta y a doida”, é sobre... Bem, é sobre lombrigas e angústia, sobre o que fazer da vida, seja você um viadinho suburbano, uma filha de deputado, um bêbado amante da filha do deputado, um maconheiro, um pintor ensandecido, um atropelado, ou duas belas jovens pegando carona na Rio-Bahia. O livro é sobre o belo e o horroroso da vida, que você pode passar com dor ou com muita dor. A escolha é sua, ou talvez não, mas, porém, contudo e entretanto, “O besta y a doida”, que mistura português com espanhol, James Joyce ( seu Jaime, para os chegados) com Gregório de Matos, os tupis e os atlantes, não é um livro triste, pelo contrário, é um livro até esperançoso, Macunaíma dos anos 70,embora o autor prefira Oswald a Mário de Andrade, mas o que sabe um autor do livro que

Sérgio Mattos abre um panorama dos modelos brasileiros nos últimos 30 anos

Há 31 anos atrás comecei minha carreira.  Eu era gerente da Yes Brazil, loja mais badalada nos anos 1980. Foi lá que comecei a ter mais contato com o mundo da moda. Nesta época, os modelos que estavam na crista da onda eram Jens Peter, Sérgio Mello, entre outros.  Sérgio Mattos - Foto: Marcio Farias Em 1986, o fotógrafo norte-americano Bruce Weber esteve no Brasil para fazer o livro “Rio de Janeiro”, sobre a Cidade Maravilhosa. Com isso, o mundo abriu os olhos curiosos sobre a moda e os modelos brasileiros. Foi a partir daí que o Rio de Janeiro entrou definitivamente no roteiro fashion mundial e muita gente boa fez sucesso! Afinal, não foram só as mulheres que aconteceram, os homens brasileiros sempre venderam bem e são os queridinhos do mercado internacional! Jens Peter para Giorgio Armani Perfumes O mercado de modelos estava começando a bombar no Brasil e a Elite Model, agência internacional do icônico John Casablancas (1942 – 2013), começou a fazer um concurso de moda

Brasileiros participam do 'Encuentro Internacional de Escritorxs e Artistas' nesta quarta (31)

Nesta quarta-feira (31), das 19 às 22 horas, acontece a edição brasileira do Encuentro Internacional de Escritorxs e Artistas, promovido pelo M.I.E.L. - Movimiento Internacional de Escritorxs por la Libertad, reunido poetas, escritores(as), cantores(as) e compositore(as), que será transmitido virtualmente pelo Facebook e YouTube . Ametista Nunes,  Cacau Novaes,  Cecília Rogers, Cristina Leilane Fernandes, Gilmara Silva, Jeane Sánchez, João Vanderlei de Moraes Filho, José Inácio Vieira de Melo, Jovina Souza, Manuela Barreto, Marcos Peixe, Nhym o Gnomo do Arco Íris, Sérgio Augusto Fernandes,  Valdeck Almeida de Jesus  participam  falando de sua trajetória literária,  lendo poemas e outros textos literários. Além disso, a noite tem muita música com Alisson Menezes, Chá Rize, Dan Gomez e Joyce Kelly.   O Encuentro Internacional de Escritorxs e Artistas está acontecendo durante toda esta semana em 22 países com uma extensa programação cultural, que inclui debates, mesas, palestras, apres

Nosso Sarau: Suênio Campos de Lucena participa de bate papo e sessão de autógrafos nesta quarta (18)

A próxima edição do Nosso Sarau tem como convidado Suênio Campos de Lucena, que participa de um bate papo, mediado por Décio Torres, sobre a sua trajetória literária, além de uma sessão de autógrafos do seu livro Histórias de Júlia . O evento acontece no dia 18 de setembro (quarta-feira), às 18h, no KreativLat do Goethe-Institut Salvador, com uma programação de inclui um recital de poesia com Alvorecer Santos, Ametista Nunes, Anajara Tavares, Cacau Novaes, Décio Torres, João Fernando Gouveia, Katiana Rigaud, Marcos Peixe, Martha Potiguar e Rosana Paulo, e apresentações musicais com Pedro Manuel e Chá Rize. O Nosso Sarau tem a produção e curadoria de Cacau Novaes, com o apoio do Goethe-Institut Salvador Bahia. A entrada é gratuita. O evento também é transmitido pelo perfil do Instagram @nossosarau.ssa , na íntegra. Sobre o autor SUÊNIO CAMPOS DE LUCENA é escritor e professor universitário. Nascido no sertão da Paraíba, é radicado em Salvador. É autor do romance Histórias de Júlia