Concisão, intensidade e tensão marcam a literatura de Rubem Fonseca (1925-2020), escritor mineiro tido como excepcional no trato da violência urbana e da condição humana em seus romances. Um dos maiores autores brasileiros do século XX, Fonseca, que morreu em abril, completaria 95 anos em 11 de maio. Com uma obra fundamental para escritores formados entre as décadas de 1970 e 1980, o contista venceu em 2003 o Prêmio Camões, o mais afamado reconhecimento literário para autores de língua portuguesa, além de ter sido celebrado seis vezes pelo Jabuti.
Na visão de Natália Trafani Sanches, professora há dez anos de uma das maiores redes de pré-vestibular do país, Fonseca conseguiu retratar com grande veracidade aspectos que ainda não figuravam na literatura clássica brasileira. “Por mais que as mazelas brasileiras da desigualdade já tivessem aparecido com Graciliano [Ramos] ou João Cabral [de Melo Neto], a violência, em seu nível mais atroz, ainda era algo distante num cenário literário que evitava um pouco isso”, explica, em entrevista ao Itaú Cultural (IC).
Autor de romances policiais “como ninguém no Brasil”, nas palavras do escritor Luis Fernando Verissimo, Fonseca aliou popularidade a uma alta qualidade literária, abrindo espaço no mercado brasileiro para a influência de outras literaturas, como a norte-americana. “Ele trabalhou na polícia do Rio de Janeiro em uma época em que a marginalização também estava em ascensão. Ou seja, não sei se ele criou realmente um universo ou se ele apenas reproduziu o que via com toques imagéticos para validar como ficção. Rubem trouxe todos esses elementos e os transformou em literatura. Crimes, prostituição, drogas, morte, investigações, injustiça, loucura, política”, diz Natália.
Com obras censuradas durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), como é o caso de Feliz Ano Novo (1975), Rubem Fonseca viu, décadas depois, algumas de suas melhores histórias virar filmes, como A Grande Arte (1991), dirigido por Walter Salles, Bufo & Spallanzani (2001), de Flávio Ramos Tambellini, e Lúcia McCartney, uma Garota de Programa (1971), de David Neves. Em 2016, a história de McCartney virou minissérie nas mãos do cineasta José Henrique Fonseca, filho do escritor.
Ao IC, Natália, que é especialista em estudos brasileiros [Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP)], indicou cinco obras fundamentais para conhecer a literatura do romancista e contista mineiro.
Por que Rubem Fonseca é tido como um dos maiores escritores brasileiros do século XX?
Acredito que Rubem Fonseca conseguiu retratar com bastante veracidade um aspecto do Brasil que até então não era protagonista nos grandes clássicos. Por mais que as mazelas brasileiras da desigualdade já tivessem aparecido com Graciliano [Ramos] ou João Cabral [de Melo Neto], a violência, em seu nível mais atroz, ainda era algo distante num cenário literário que evitava um pouco isso. Classificado como romance policial por uma questão mercadológica mesmo, o foco não era desvendar o crime, e sim retratar com detalhes a crueldade e os limites do ser humano que só se revelam em situações de extremos.
O autor é considerado um dos mestres do conto no país. Por qual razão?
O conto é um estilo literário pouco valorizado do ponto de vista da forma. Diferentemente do romance, o contista não tem o tempo a seu favor, seus personagens precisam de poucas descrições, seu conflito precisa ser rico em ações e o final precisa surpreender. É a estrutura perfeita para retratar a violência de um país que sofre em muitos contextos sociais e político-econômicos. Rubem criava esses personagens misteriosos, e o que importava era o agora da ação. Se no conto o tempo é inimigo, podemos pensar que na vida real ele também o é: em um contexto de violência, pode-se morrer a qualquer momento – e os contos de Rubem permeiam tudo isso. Ele é um “brutalista”, como afirma o professor Alfredo Bosi, e é pioneiro nisso, no conto e no estilo.
Como a obra do autor pode estar presente e ajudar no aprendizado em sala de aula?
É bem difícil trabalhar Rubem Fonseca dependendo da escola em que se está, ainda mais em contextos tão obscuros como este que estamos vivendo. Nem tanto pelo cunho ideológico do livro, mas pela linguagem pesada, com palavrões, palavras sexuais e construção de imagens grotescas. Tanto que alguns de seus livros foram censurados justamente por causa disso. Lembro de uma vez trabalhar o conto “A Força Humana” com alunos de 1o ano do Ensino Médio e um deles falar: “Eu não sabia que podemos falar palavrão nos livros”. Por um lado, é bem interessante, porque desconstrói toda a erudição e pose de uma literatura feita por autores de terno, mas é um caminho a seguir, romper de um dia para o outro assusta o adolescente e, de quebra, os pais. É uma obra [a de Fonseca] que instiga, de fato, e que pode despertar muitos sentimentos em crianças e jovens que até então enxergavam a literatura como algo obsoleto.
Cinco obras para conhecer o escritor
Feliz Ano Novo, de 1975
“Nesta obra de contos, censurada pela ditadura militar na época de seu lançamento, a grande questão da desigualdade está presente e pode ser resumida, em uma das narrativas, em um único questionamento: 'Por que os outros têm e eu não posso ter?'. A partir disso, essas personas vão, literalmente, possuir tudo o que um dia elas nunca tiveram, deixando rastros de sangue e morte.”
O Cobrador, de 1979
“É um livro em que os contos se entrelaçam e todos eles tratam de uma violência generalizada que vai da luta armada à pedofilia. O conto que dá nome ao livro também foi censurado durante a ditadura. Como um dos personagens marginalizados afirma 'Agora eu não pago mais nada, só cobro', o regime via isso como uma leve incitação à 'baderna', à busca por direitos de forma bem violenta. Diferentemente do que muitos pensam, o filme [feito com base no livro] não é apenas sobre este conto em si e mistura outras três narrativas do autor, de diferentes livros.”
Bufo & Spallanzani, de 1983
“É um livro bem construído no que diz respeito a referências. Por se tratar, mais uma vez, da ocorrência de um crime, neste caso de uma socialite carioca, o título é enigmático e traz como intertextualidade até a etimologia da palavra, além de citar escritores e fatos que fazem o leitor perceber a fortuna literária de Rubem Fonseca através de suas insinuações. O livro foi adaptado para o cinema em 2001.”
A Grande Arte, de 1983
“A grande sacada desta obra é o personagem Mandrake, que é muito bem construído. Como detetive brasileiro, é um homem comum, muito mulherengo, que não acredita em justiça com as próprias mãos, mas também não confia no sistema. Ele afirma que os crimes dependem de interpretação para, de fato, ser desvendados. 'O comportamento humano não é lógico e o crime é humano', diz. Mas existe algo em comum com outros detetives de outros romances. Por já ter sofrido as consequências de ser do mundo policial, Mandrake vê, em muitos casos, a oportunidade da vingança, e, por tantas contradições, o livro é bem interessante de ler.”
Agosto, de 1990
“É uma obra que mistura realidade e ficção, pois tem como conflito o famoso atentado da Rua Tonelero, cujo alvo era [o jornalista e político] Carlos Lacerda, inimigo de Getúlio Vargas. Se Rubem Fonseca precisava de um mistério envolvendo política, poder e sangue, essa era a receita pronta para uma grande obra.”
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